Parnaso em Fúria 01

A lírica de Felipe D´Castro...

Janelas nas esquinas



Asas curtas 
Para voos longos 
Janelas nas esquinas 
Prisões nos vértices 
Da vida 

O voo 
É uma cela 
Presa no vento 

Pesos cravados 
Nas asas 
Do tempo 

As frigidelas



Há tampa 
Pra cada panela 

Até as frígidas 
Frigideiras 
Têm tampas 
Pra elas. 

Como rasgam os barcos os estreitos



Quando ecoar no alvorecer das eras 
A badalada última do peito 
O meu espírito, tal qual uma fera, 
Rasgará a dimensão terral do leito. 

A minha luz, uma brutal libélula, 
As fibras do casulo por inteiro 
Há de rasgar, esmigalhar as células, 
Como rasgam os barcos os estreitos. 

Haverei de buscar entre os milênios, 
Vagando pelos séculos terrenos, 
Tua voz perdida no passar dos anos. 

Irei, por fim, juntar, cansado e rouco, 
Nossos cardíacos músculos ocos, 
Como dois corações parnasianos. 

Sobre um corpo celeste




Do céu azul na profundeza escura
Brilhava a estrela, como um fruto louro,
E qual a foice, que no chão fulgura,
Mostrava a lua o semicirc'lo d'ouro,
Do céu azul na profundeza escura.
(Murmúrios da Tarde – Castro Alves)

Ontem à noite, quando a lua morria,
E a madrugada me tomava o espírito,
Dentro de alguma estrela reluzia
O teu brilho perdido no infinito.

No negro céu, onde o olhar podia,
Como nalgum experimento onírico,
Teu corpo sem matéria se movia
Pondo aos olhos o brilho do teu físico.

Eu, no negrume que a noite propunha,
Enxergava talvez no firmamento
A música corpórea que compunhas.

Quisera eu do sol o nascimento...
Para que o manto noturno que vestes
Deixe desnudo o teu corpo celeste.

Vênus serena



Surgiu-me duma névoa, donde nada,
Eu suponho, houvesse surgido antes.
Surgiu-me... e no peito meu, estrada
Vazia de sentir, se fez de errante...

Vi-a! Entre as nebulosas mil camadas,
Por entre os melancólicos pulsantes
Átomos, a matéria dela! Amada
Minha, tomou-nos o ar de todo amante!

Vinha a mim numa concha. Nua, serena
Como a noite em que vinha, olhos-luzes
Clareando minh'alma tão pequena...

Nalgum lugar hei de encontrar de novo
As lágrimas que pus naquelas cruzes,
Quando tu aliviasse-me o estorvo!

Velas e velhas. Lágrimas e suor.



Estávamos todos tristes. No centro da sala o caixão imenso. As velas e velhas a se derreterem. As velas comemoram aniversários e choram mortes, diria o poeta. O homem, com algodão enfiado em todos os buracos, morrera de algo cuja imaginação do leitor quiser. Não vim contar acessórios, mas a essência. A sala era pequena, pouca iluminação. Ouvia-se conversas chorosas, chiados, sussurros, mas ninguém que discursasse pelo homem morto. A viúva, dependurada sobre o marido, acabara de perder seu bem maior, seu ponto fixo, sua estrela em terra de penumbra. Chorava esmorecida e inconsolável, como todas as mulheres.
Os dois filhos próximos ao caixão. Um rapaz alto, de trejeitos feminis, talvez um Ulisses em matéria de Penélope. Charmoso. A garota era mais simples, vestia muitos panos. Tinha uma feição fechada, rancorosa. Mas sua face era sublime, traços leves, plumáticos. Helena de jeans. Ambos em volta do caixão.
O resto da família passava rápido pelo falecido, olhavam-no. Uns comovidos, outros satisfeitos. A pequena casa estava entupindo-se de pobres. Do lado de fora alguns pirralhos descamisados rindo. Assassinaram um bandido, um cadáver adiado, como diria um outro poeta. A morte assusta a todos, todavia os pobres parecem quebrar essa máxima, estrangulá-la com seus risos sem sentido. Ela não chorava. Ela era helênica, no entanto não chorava. Eu gosto de ver mulher chorar. Ela não chorava. Isso me preocupava profundamente. Imensamente profundo.
Todas as mulheres estavam chorando, ela não. Ela não chorava. Isso me inquietava como palhaça face à plateia inerte. Mulher tem que chorar. Levantei-me de onde estava, caminhei para próximo do caixão. Falei alguma coisa com o rapaz charmoso. Falava bem. Fitei a moça, vi seus olhos helênicos, brancos, intocados com toda semântica. Branca, não como nuvem, não como leite, só branca. Apesar da roupa cobrir-lhe o corpo, vi seus seios juvenis, a graça da mocidade. Uns braços tão brancos e macios. Porque os toquei. Calma, eu disse, o momento é difícil, mas tudo pode voltar ao normal. Ela não me olhou, tampouco falou nada. Sei que é difícil perder alguém, mas depois se ajeita, ele vai pra um bom lugar, completei. Finalmente a menina olhou-me. Olhos cáusticos. Tanta vida em seus olhos, que parecia loucura a morte tão perto. Lábios rosados, súplices. Príamos aos meus lábios Aquiles. Você não quer descansar um pouco?, perguntei.
Fomos à cozinha. Tomamos água. Via-a abrir a geladeira, buscar algo na parte de cima. Com os braços levantados e corpo estendido, rígido. Vi seus músculos tesos. Costas desenhadas, finalizadas com uma curva tão suave que o próprio Caravaggio não o faria. O jeans apertado contornava suas coxas. Eu teria que fazê-la chorar.
Você não está triste? Um pouco. Mas seu pai morreu, certo? Já morreu faz tempo! Então esse não era seu pai? Não, não é isso, ele morreu pra mim. Por quê? Prefiro não falar. Por quê? Quem é você mesmo? Do pai a gente tem que gostar, não importa! Você não teve pai, não é mesmo? Garota, você tá me confundindo. Ah, é? É sim. Por quê? Quero fazê-la chorar! Como é? É, mulher tem que chorar! Você é louco!
Por baixo da mesa pus minha mão sobre sua coxa, arrastei sobre seu jeans minha pele. Ela entendeu o recado. Estávamos a sós na cozinha. O eco dos prantos plantava em nós um espírito juvenil. Talvez possamos conversar melhor no quarto da mãe, ela disse. Foi muito fácil. Tinha que ser difícil.
Entrando no quarto, parada à porta, titubeou. Empurrei-lhe pra dentro pondo meus lábios em seu ombro, subindo até a orelha, sugando seu medo. Seus olhos eram receosos. Tranquei a porta. Não havia mais volta. Ela ficou de frente pra mim. Por que você não gostava do seu pai? Porque ele não me queria...
Joguei-a na cama, com força. Cai sobre ela devagar, pra que sentisse meu domínio. Senti sua respiração ao encontro de meu pescoço, até que desci a cabeça e encontrei seus lábios-rosas. Minhas mãos tinham movimentos próprios e dissociados de meu cérebro. Aos poucos, ia subindo sua primeira blusa, ela, rápida, fez com que a tirasse rápido. Ela queria algo ligeiro, eu queria fazê-la chorar. Tirei a segunda blusa e enfim vi seus seios alvos, pontudos, lanças monalísicas lisas. Já não sabia onde repousar a boca. Depois de muito (des)pensar, resolvi sugar seus seios brutamente, algo próximo da dor, imagino. Ela era forte. Eu sugava e ela me desabotoava a calça. Estava tudo tranquilo até que senti meu membro mais fraterno em sua coxa, pulsando. Larguei de imediato seus seios saborosos e me pus a tirar-lhe o maldito jeans. A calcinha veio junto, como ajuda do destino. Não havia um pelo em seu sexo. Olhei-a nos olhos por um instante, num diálogo mudo. Olhos safados, lábios mordidos, mãos no meu ombro, e eu desci com a língua escorregando sua barriga, até chegar na extensão rósea de seu prazer. Onde minha língua pôs sentido em sua boca. Gemia baixo a cada sucção. Massageava lento seu sexo, e ela pressionava-se contra seu corpo, com as mãos em minha cabeça, as pernas dobradas, pressionando meus ouvidos, seus gemidos altos, minhas mãos em sua face, meu fôlego acabando – por um gostoso motivo.
Levantei-me já hirto, inflexível. Vira de costas, disse. Ela, ainda mole, virou sem rebelião. Pôs os joelhos na cama, mandei tirar. Quero que deite, ordenei. Ela deitou, com os seios no colchão. Vi tudo que queria. Ela de costas, subi na cama, deitei sobre ela, pra conseguir melhor me apoiar, suspendi o corpo. Abre as pernas um pouco, mandei. Pronto, agora você escolhe o que fazer, comentei. Ela segurou, e colocou devagar em seu sexo, fazendo-me deitar sobre ela, em um contato quase cem por cento. Apoiei-me apenas em uma perna e comecei a introduzir lentamente na garota que não chorava. Seu gemido começou a aumentar, ao passo que na sala começaram os cantos católicos. A ladainha estava formada. As velhas cobriam o som da menina. Pode gemer, gostosa, dizia baixo em seu ouvido. Aumentei um pouco o compasso do movimento, enquanto suas nádegas roçavam na minha virilha. Ela pôs os braços no meu pescoço, buscando minha boca em sua nuca, no que eu suguei-lhe bem a região dos ombros. Ela gemia, gemia mais. Vai delícia, tá gostoso? Tá sim, coloca tudo, vai! E eu bombava mais forte  mais rápido ligeiro,mais forte bombando bombando forte rápido ligeiro bombando forte rápido ligeiro bombando gemendo gritando forte rápido ligeiro bombando bombando bombando mais rápido, rápido... gememos ao mesmo instante, num orgasmo compartilhado.
Ela jogou a face pra o colchão rapidamente. E enquanto eu tirava meu músculo de dentro do dela, pude ouvi-la chorar. Foi como se eu houvesse repetido o ato. Meu pai nunca me quis assim!, disse. Por que não? Não importa, mas me custou cinquenta reais.
Daí por diante, leitor animado, a história é pouca. Do que lembro é apenas os policiais a baterem à porta. A garota algemada. Ela não chorava. Mas é como não dizem: se não chora por mal, chora por bem.

Poemas do Livro "Eu" - Eliézer Rolim





Eliézer Rolim é teatrólogo e cineasta. Dirigiu o filme "O Sonho de Inacim". Para teatro, escreveu "Beiço de Estrada" e dirigiu "Os Anjos de Augusto". Prepara texto baseado no episódio da morte de um mágico húngaro durante uma apresentação no Teatro Santa Roza.

Do amor e outros mistérios I


O amor, este cego tateando a eternidade.
Fala-se de amor como quem fala de vizinhos. Como quem fala de pessoas. Vi, um dia, dois velhos juntos, de mãos dadas. Amam-se? E quem o sabe? São tão velhos que se esqueceram do amor - e por isso, justamente por isso, talvez amem. De onde vem? De que matéria de pelúcia vem esta luz que por sobre as nebulosas horas de nossas vidas, nos caí de incógnitas nuvens misteriosas? E nem Augusto decifraria tal psicogênese...
Amar, porque amar é imprecisamente preciso. Amar porque é necessário. Socialmente, internamente, psiquicamente, espiritualmente necessário. Amar porque sim. Somente isso. Amar no parque, na igreja, amar na rua, nos carros, nas bocas, amar no escuro, amar quando se quer. Queime a vida sempre com a chama mais forte, diria Hanry. Calma, meu caro, feliz aquele que queima a sua chama – comecemos por aí.
O amor, cegueira requerida, é um beco com saída em que insistimos por nos perder. Poetas amam, ladrões também. Um, as almas, o outro, as moedas. Em que corpo parou tua alma perdida?

Lira




Não sou, morena bela, qual abelha...
Que vive por buscar entre os jardins,
No seio leve das manhãs vermelhas,
A fome morta nas manhãs ruins.
Pois, pra matar esta fome maldita
Tem a abelha o carinhoso labor
De sugar ternamente cada flor
Na ânsia de saber onde o algoz habita.
És tu, morena bela,
És tu a minha vela...


Eu sou um negro escaravelho, senhora,
Que ao escoar-se da vida, da Sorte,
Elege só uma flor de toda a flora
Pr´em suas pétalas viver até a morte
E é no querer de adensar-se em ti
Que espero das pétalas a clausura,
E abafado, ao fechar das fissuras,
Buscar no teu seio a brandura do fim.
És tu, morena bela,
És tu a minha vela...

Vales tu mais que mil jardins, ó, bela,
E mais que mil vezes versejarei
Ao teu ouvir minhas liras singelas
Onde cravo as cobiças que sonhei.




As Almas


Ama o homem morto quanto ama
A morte o morrente velho homem.
Amar depois que a morte o consome
Faz deste homem o que não o chamam.

Porque homem – de essência humana –
Pouco ama àqueles que os assombra
E que como uns Mistérios, vão-se, somem,
Transformando-se em sombra, verme e lama.

Mas sim... ama o vivente o homem morto
Cuja alma prometeu, de quem absorto
Sorveu a concordância do eterno.

Que importa que não ame a viva alma?
Ama o homem morto e tem calma
Pra fazer do esquecer um amor moderno.

Dura Lex, sed latex – Parte I



“Para os pobres, é dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é a lei. Para os ricos, é dura lex, sed latex. A lei é dura, mas estica.” Não encontrei frase melhor para iniciar este meu comentário quanto essa de Fernando Sabino. Hoje ao meio-dia assisti a um programa policial – destes sensacionalistas que são exibidos todos os dias – e um caso em especial chamou minha atenção. Não por acaso foi a última reportagem a ser exibida, eles precisavam segurar a audiência. E conseguiram. Era mais um caso de furto.
Uma mulher, jovem, caixa de um supermercado da capital, foi flagrada roubando vinte reais. Ela justificou-se afirmando que precisava do dinheiro para poder comprar um remédio para o filho, que é especial. Não discutirei aqui se o que ela fez foi crime ou não, pois furto é furto. Independente do que você roube, seja um quadro de Vinci ou dois reais, você deve pagar por isso. Não se pode ter, à força, o que não é seu. A mulher foi encaminhada à delegacia. Além de ser réu confesso, havia várias provas contra a mesma, como fitas de vídeo. Até aí tudo bem.
Segundo o apresentador deste programa, Samuka Duarte, a mulher “desceu” para o presídio nesta manhã, 10. Lá, irá ter de pagar quatro anos de reclusão, já que o crime é inafiançável – assim colocou o apresentador e seu repórter, Emerson Machado. Não tenho conhecimento acerca das leis deste país, confesso; porém, o pouco que vejo na prática já me enoja. Não que eu ache a atitude de prendê-la errada (embora pense que poderia haver uma pena mais leve), mas em comparação com outros inúmeros casos, é irritante perceber a incapacidade do pobre de se defender.
Vivemos num país de crimes engravatados. Num país cujos herois estão confinados numa casa luxuosa, podendo ser assistidos por toda a população a qualquer momento. Eles estão conseguindo alienar um país de 190 milhões de pessoas. Isso é sério. Em que país a lógica legislatória seria capaz de condenar uma pessoa que furta vinte reais de um supermercado, e inocentar alguém que rouba milhões de reais de seu próprio cofre?
Se o Brasil fosse sério... não, não falemos de utopias! Digamos apenas que se o nosso país fosse um país justo, haveria o mesmo tratamento para todos. Tratamento bom ou mal. A classe política assumiu um status de superioridade social, e tornou-se intocável. Ora, paremos com essa baboseira! Os políticos são pessoas comuns, escolhidas por pessoas comuns para que as representem politicamente. Tiririca é o exemplo mais claro, disso. Nossa população não pode continuar aceitando tudo que lhe é imposto! Essa mulher não pode pegar quatro anos de prisão enquanto “furtos legalizados” ocorrem com o conhecimento e suborno de nossas “autoridades”. Um dia desses vi outro caso interessante.
Num acidente de automóveis na capital, um dos envolvidos era um vereador da cidade. Ele estava visivelmente embriagado. Todos sabemos quando alguém está embriagado. Na entrevista que o policial concedeu, disse que não sabia ainda se o vereador estava bêbado, na sua opinião ele estava limpo. Faça-me o favor, entregue esta sua farda! Até quando vamos engolir o autoritarismo dos nossos políticos? Até quando o Brasil vai ser o país dos mais ricos? Daqueles que enriquecem retirando dinheiro dos pobres para dar aos ricos, numa espécie de Síndrome de Robin Hood às avessas? 

Cidade de Deus e uma caixa de sapatos.



Cortei primeiramente o seu bracinho
Como quem cava ossos num cemitério...
Como quem dá ao transcendente mistério
A pureza mamífera do arminho.

Vi seu sangue infantil plasmar-se em vinho
E escorrer sobre a lâmina funérea
E se infiltrar em cada veia, artéria...
Em cada parte da matéria minha.

E como se um Heitor deficiente
A um Aquiles nutrisse onipotente,
Suguei-lhe a vida, o sonhar... desejos.

Juntei cada pedaço, encaixotei,
Mas, vejam, ainda assim não encontrei
 O Rei que às minhas mãos confiasse um beijo;

Sob a Luz Órfã da Noite | Parte 01



- Os ateu tão ficando ridículo, não acha?
- Depende.
- Depende de quê?
- Do ponto de vista...
- Desenrola, Tramba.
- Não... só isso.
- Como assim “só isso”?
- Ué, só isso, ora! É assim que deve funcionar: eu digo que “depende”, você concorda. Sem pensar a respeito, de preferência.
- Ah, cara, cê tá me zoando...
- Você já fez isso antes, então...
- Então o quê?
- Não é isso que é fé?
- Fé não é acreditar em qualquer coisa, maluco. Passa aí que é minha vez.
- Então acho que já fumei demais por hoje. Eu jurava que fé era assim. Bastava ouvir uma “verdade absoluta” e pimba! Era só acreditar até o fim.
- Sem evidência? Sem prova?
- Ué, provar como?
- O quê?
- Que Deus existe, neguinho! Tá chapado já?
- Ah, mas isso se prova todo dia! Olha o céu, a gente vivo...
- Mas isso a ciência explica!
- Fala sério, conversa furada essa parada toda de macaco e tal...
- Furada? Cê tá doidão já, só pode ser! Tá loucão, mano?
- Que nada, quem criou as parada primeiro? Quem criou a tal das poeira lá pra ter a merda da explosão que tu disse?
- Cê tá sem fundamento.
- Ser ateu é muito fácil, só dizer que não existe e tal...
- Eu não disse que era ateu!
- Ah, não... qual é, maluco? Vem com essas pergunta aê e quer ser uma Madre Tereza? Aqui não, porra! – riu ligeiro.
- Qual é, neguinho? Posso não? Vai mandar no meu pensamento agora? Hein? Posso perguntar as parada mais não?
- Pode! Vai se ver é com o homem lá em cima, né comigo, não!

Fez-se um silêncio momentâneo, até que Trambolho, mirando o mar, arriscou fazer a última pergunta.

- Mas sério, neguinho... pra onde tu acha que vai aquele pessoal todo das Arábia?
- Ish, mano, sei não... aquele povo né de Deus, não!
- É. Porra... metade do mundo vai pro inferno! – riram.

Mexicano tragou o cigarro de maneira profunda, até acabá-lo. Ficaram algum tempo ainda prostrados sobre a areia alva de Tambaú. Talvez observando a Lua, aquela misteriosa bola órfã, por assim dizer.

- E aí, já deu hora? – perguntou Trambolho.
- Acho que já, vamo passar lá no Mulambo?
- Ele tá onde hoje?
- Guardando carro lá perto das tapioca.
- É rocha.

Pelo calçadão. Ambos maltrapilhos. Foram rapazes sábios um dia. Ainda o eram , pois sim. Trombolho era um rapaz alto, meio desengonçado. Já morava nas ruas há uns dois anos. Por outro lado, o Mexicano nasceu na rua. Sem pai, nem mãe, pareceu mesmo parido das entranhas do asfalto. Adotado pela praia, vivia por aquelas bandas desde sempre. Já moço conheceu as religiões. Tentou de tudo, mas o catolicismo lhe conquistou. No caminho:

- Esse papo me lembrou umas coisa, Tramba.
- O quê, nego?
- Quando o pastor pedia o dízimo lá nas igreja que eu ia. – riram
- E aí, e tu?
- Eu dizia: doutor, eu não tenho nem pra mim, o que dirá pro senhor! Aí ele aloprava...
- Mas tu falou pro senhor pra quem? Pra ele?
- Sim, cagalhão, e era pra quem? – riram

Apesar do nome, Trambolho era mais que corpo, que músculos. Metia-se a poeta. Pra passar o tempo, ganhava trocados recitando Augusto dos Anjos pelo calçadão. Todos gostavam, mesmo sem entenderem os versos. Porque bom mesmo é dizer que gosta. E ele começava com aqueles versos perfeitos, cheios de podridão e amor, e o povo gostava. Ora, um rapaz maltrapilho que sabia Augusto dos Anjos era como ver um cachorrinho batendo palmas. A orla é humana. A orla é humana? É, é humana.
E eles iam andando pelo calçadão, lotado por gente elegante. De corredores de Adidas. Velhos jogando seu xadrez, e criancinhas brincando com seus brinquedinhos de duzentos reais. Tudo isso na orla humana.

- Aí, Tramba, tu acha que aquele maluco acreditava em Deus?
- Que maluco, neguinho?
- O dos Anjo, lá.
- Ah, sim... devia acreditar.
- E como tu não sabe, porra?
- Qual é, Mexicano, eu sei a poesia dele, não a merda da biografia! – riram.

Perto da feirinha, viram de longe o Mulambo. Mulambo era o mais maltrapilha dos três. Foi o último a se juntar ao grupo, que tinha mais dois rapazes, o Pé de Asa, e o Mano. Mas estes últimos fariam um outro esquema nesta noite.

- Pô, Mulambo, tá chique hoje, hein, filho?
- Sacomé, né, rapá!? Quando o serviço é grande a gente tem que tá nos pano, moleque! – riram.

Mulambo estava com uma bermuda que havia usado apenas seis meses, era a mais nova que tinha. No pescoço, uma correntinha de Santo Expedito sempre ia pendurada. Camisa era algo que não lhe agradava. Dizia que blusa era coisa de viado. Simplesmente. Ele queria mesmo era ser rico.

- E aí, vamo fazer o trampo mermo, né?
- Claro, cê acha que a gente ia vim aqui de besta?
- Qual é, Mexicano, tá estressado, maluco? Vamo-se embora?
- E os carro? – perguntou Trambolho.
- Já roubei o que tinha que roubar! – riram alto.

Os três partiram para a missão da noite. De volta ao calçadão, Mexicano, que parecia mesmo ser “o cabeça” do grupo, começou a explicar o esquema. Primeiro iam encontrar o Sr. Lavoneri, que forneceria todo o equipamento necessário. A execução desse plano era algo melindroso, que precisava de muita destreza. O Mexicano garantiu ao homem que daria conta do recado. Queria apenas duzentos reais pra cada um. O velho quis baixar o preço, mas o garoto era duro na negociação. Ficou por duzentos. Assim, teriam dinheiro pra manterem-se por duas semanas sem ter de roubar ninguém. Trambolho e Mulambo não sabiam onde seria o encontro, nem quem era o velho, mas confiavam no “chefe”. Chegaram em uma das ruelas próxima à praia. Mexicano mandou os dois esperarem, ia encontrar Sr. Lavoneri sozinho.
O velho estava com uma blusa preta, pólo. Usava um chapéu com abas longas, e tinha um óculos de lentes grossas. Cabelos grisalhos, e mãos trêmulas àquele momento.

- Aqui estão as armas. – disse.

Por Sobre os Lençois


Bem olhava pra mim a minha dama...
Nós dois, entre os lençóis, por sob as luzes,
E nossas pernas, como duas cruzes,
Confusas, misturadas, já em chamas.

Impiedosamente a boca chama,
E, sôfrego, reparo na saúde
De seus lábios carnudos, rogando: use!
E somos dois famintos sobre a cama...

Mãos minhas vão comendo aquela imagem
E a língua a requerer vossa paisagem
E os olhos a tocar o humano inferno!

Toco os lençóis de seda salientes
Sobre as coxas da moça que já sente
O pulsar do meu músculo mais fraterno!

Os Meus Versos Mais Íntimos




Crês! Ninguém te iludiu, oh, formidável
Anjo de minha lúcida quimera...
Quando nus, nos amamos quais panteras
Vi o teu do meu sangue inseparável!

Disse que sou o Deus que a ti espera,
O anjo, que nesta terra miserável
Profundissimamente inevitável
Vê o ato de atacar-te como uma fera.

Tragar-te-ia, oh, como a um cigarro,
E amar-te-ia até o último escarro
Desta boca maldita que apedreja...

Mas que nenhuma pedra toca a chaga
De teu corpo moreno que me afaga
E de tua boca serva que me beija.

Tenho medo de mil coisas


Tenho medo de mil coisas,
Inclusive de perder-te,
Logo tu onde a natureza
Exagerou nos enfeites,
A por nos olhos mil luzes,
Na tua pele mil perfumes
E na boca este deleite...

Esse deleite de língua,
Teu músculo semi-santo,
Cujo toque me enlaça
Deixa meu corpo bambo...
As pernas quase não sinto...
Se disser o contrário minto...
Pois converto-me em molambo.

Sou molambo em teus braços,
Brinquedo em tuas pernas,
Sou leso, safado e biruta!
Sou a brincadeira moderna
Que a tua criança pediu,
Sou o pouco de luz que caiu
No escuro da tua caverna.

Oh, caverna de meu agrado!
Sou rei sem alguma coroa,
Bobo sem nenhuma piada,
Sou povo que não se amontoa,
Verso que não encanta,
Sou a sereia que não canta,
Sou soneto que não se entoa.

Tua pele quando me toca
Amnésia faz de mim
Não de esquecer coisa pouca,
Mas de esquecer bom e ruim,
Esquecer fêmea e macho,
Onde me perco, onde me acho,
Esquecer do não e do sim.

Tenho medo de mil coisas
Inclusive de perder-te,
Toda vez que faço versos
É este mesmo solerte,
Pois não controlo as palavras
Que nasçam da mesma aljava
Onde nasce o prazer de ver-te. 
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