Parnaso em Fúria 01

A lírica de Felipe D´Castro...

Sob a Luz Órfã da Noite | Parte 01



- Os ateu tão ficando ridículo, não acha?
- Depende.
- Depende de quê?
- Do ponto de vista...
- Desenrola, Tramba.
- Não... só isso.
- Como assim “só isso”?
- Ué, só isso, ora! É assim que deve funcionar: eu digo que “depende”, você concorda. Sem pensar a respeito, de preferência.
- Ah, cara, cê tá me zoando...
- Você já fez isso antes, então...
- Então o quê?
- Não é isso que é fé?
- Fé não é acreditar em qualquer coisa, maluco. Passa aí que é minha vez.
- Então acho que já fumei demais por hoje. Eu jurava que fé era assim. Bastava ouvir uma “verdade absoluta” e pimba! Era só acreditar até o fim.
- Sem evidência? Sem prova?
- Ué, provar como?
- O quê?
- Que Deus existe, neguinho! Tá chapado já?
- Ah, mas isso se prova todo dia! Olha o céu, a gente vivo...
- Mas isso a ciência explica!
- Fala sério, conversa furada essa parada toda de macaco e tal...
- Furada? Cê tá doidão já, só pode ser! Tá loucão, mano?
- Que nada, quem criou as parada primeiro? Quem criou a tal das poeira lá pra ter a merda da explosão que tu disse?
- Cê tá sem fundamento.
- Ser ateu é muito fácil, só dizer que não existe e tal...
- Eu não disse que era ateu!
- Ah, não... qual é, maluco? Vem com essas pergunta aê e quer ser uma Madre Tereza? Aqui não, porra! – riu ligeiro.
- Qual é, neguinho? Posso não? Vai mandar no meu pensamento agora? Hein? Posso perguntar as parada mais não?
- Pode! Vai se ver é com o homem lá em cima, né comigo, não!

Fez-se um silêncio momentâneo, até que Trambolho, mirando o mar, arriscou fazer a última pergunta.

- Mas sério, neguinho... pra onde tu acha que vai aquele pessoal todo das Arábia?
- Ish, mano, sei não... aquele povo né de Deus, não!
- É. Porra... metade do mundo vai pro inferno! – riram.

Mexicano tragou o cigarro de maneira profunda, até acabá-lo. Ficaram algum tempo ainda prostrados sobre a areia alva de Tambaú. Talvez observando a Lua, aquela misteriosa bola órfã, por assim dizer.

- E aí, já deu hora? – perguntou Trambolho.
- Acho que já, vamo passar lá no Mulambo?
- Ele tá onde hoje?
- Guardando carro lá perto das tapioca.
- É rocha.

Pelo calçadão. Ambos maltrapilhos. Foram rapazes sábios um dia. Ainda o eram , pois sim. Trombolho era um rapaz alto, meio desengonçado. Já morava nas ruas há uns dois anos. Por outro lado, o Mexicano nasceu na rua. Sem pai, nem mãe, pareceu mesmo parido das entranhas do asfalto. Adotado pela praia, vivia por aquelas bandas desde sempre. Já moço conheceu as religiões. Tentou de tudo, mas o catolicismo lhe conquistou. No caminho:

- Esse papo me lembrou umas coisa, Tramba.
- O quê, nego?
- Quando o pastor pedia o dízimo lá nas igreja que eu ia. – riram
- E aí, e tu?
- Eu dizia: doutor, eu não tenho nem pra mim, o que dirá pro senhor! Aí ele aloprava...
- Mas tu falou pro senhor pra quem? Pra ele?
- Sim, cagalhão, e era pra quem? – riram

Apesar do nome, Trambolho era mais que corpo, que músculos. Metia-se a poeta. Pra passar o tempo, ganhava trocados recitando Augusto dos Anjos pelo calçadão. Todos gostavam, mesmo sem entenderem os versos. Porque bom mesmo é dizer que gosta. E ele começava com aqueles versos perfeitos, cheios de podridão e amor, e o povo gostava. Ora, um rapaz maltrapilho que sabia Augusto dos Anjos era como ver um cachorrinho batendo palmas. A orla é humana. A orla é humana? É, é humana.
E eles iam andando pelo calçadão, lotado por gente elegante. De corredores de Adidas. Velhos jogando seu xadrez, e criancinhas brincando com seus brinquedinhos de duzentos reais. Tudo isso na orla humana.

- Aí, Tramba, tu acha que aquele maluco acreditava em Deus?
- Que maluco, neguinho?
- O dos Anjo, lá.
- Ah, sim... devia acreditar.
- E como tu não sabe, porra?
- Qual é, Mexicano, eu sei a poesia dele, não a merda da biografia! – riram.

Perto da feirinha, viram de longe o Mulambo. Mulambo era o mais maltrapilha dos três. Foi o último a se juntar ao grupo, que tinha mais dois rapazes, o Pé de Asa, e o Mano. Mas estes últimos fariam um outro esquema nesta noite.

- Pô, Mulambo, tá chique hoje, hein, filho?
- Sacomé, né, rapá!? Quando o serviço é grande a gente tem que tá nos pano, moleque! – riram.

Mulambo estava com uma bermuda que havia usado apenas seis meses, era a mais nova que tinha. No pescoço, uma correntinha de Santo Expedito sempre ia pendurada. Camisa era algo que não lhe agradava. Dizia que blusa era coisa de viado. Simplesmente. Ele queria mesmo era ser rico.

- E aí, vamo fazer o trampo mermo, né?
- Claro, cê acha que a gente ia vim aqui de besta?
- Qual é, Mexicano, tá estressado, maluco? Vamo-se embora?
- E os carro? – perguntou Trambolho.
- Já roubei o que tinha que roubar! – riram alto.

Os três partiram para a missão da noite. De volta ao calçadão, Mexicano, que parecia mesmo ser “o cabeça” do grupo, começou a explicar o esquema. Primeiro iam encontrar o Sr. Lavoneri, que forneceria todo o equipamento necessário. A execução desse plano era algo melindroso, que precisava de muita destreza. O Mexicano garantiu ao homem que daria conta do recado. Queria apenas duzentos reais pra cada um. O velho quis baixar o preço, mas o garoto era duro na negociação. Ficou por duzentos. Assim, teriam dinheiro pra manterem-se por duas semanas sem ter de roubar ninguém. Trambolho e Mulambo não sabiam onde seria o encontro, nem quem era o velho, mas confiavam no “chefe”. Chegaram em uma das ruelas próxima à praia. Mexicano mandou os dois esperarem, ia encontrar Sr. Lavoneri sozinho.
O velho estava com uma blusa preta, pólo. Usava um chapéu com abas longas, e tinha um óculos de lentes grossas. Cabelos grisalhos, e mãos trêmulas àquele momento.

- Aqui estão as armas. – disse.

2 comentários:

Felipe só agora eu vi esse teu conto. Acho que vc conseguiu algo muito difícil numa estória que é manter a força dos diálogos. Acho que o conto sobre o Ernesto vc escreveu de um só fôlego e esse com certeza foi mais trabalhado.Não é puxação de saco não,ficou bom.Deve ser a leitura do Cidade de Deus que te ajudou nos diálogos.Continue assim...

 

Tens razão, Alex, a leitura de Cidade de Deus realmente está me ajudando a construir diálogos mais fortes. E o tema também eu gosto bastante.
Aquele abraço! Hehe

 

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