Parnaso em Fúria 01

A lírica de Felipe D´Castro...

Duas horas depois da morte

Ao meu pequeno filho que não tive





Levei um tiro bem no meio da testa. Não sei nem se doeu, não demorou muito e eu apaguei. Foi dois filhos da puta, um guiando a moto e o outro na garupa, descarregando o três oitão na minha cara... pow, pow, pow, não tive tempo nem de fazer uma última prece e pedir meus tantos perdões.
Quando a gente morre a primeira vez é tudo muito estranho, o corpo fica leve, a cabeça vazia, os pés ficam tão sublimes; ai a gente se dá conta que é só espírito. Um segundo depois do fim é o início de uma nova vida.
Sempre vivi no perigo, fui cobrador e cobrado, traidor e traído, assassino e assassinado. É bom viver assim, se perde a esperança e ai não resta mais nada para te impedir de ser feliz. Eu já esperava que o Coronel Silva mandasse me matar, mas não imaginava que ia ser em um dia tão bonito, quando a praia cantava doces melodias azuis, ecoando nos búzios os marulhos do verão de João Pessoa. Foi mais de cinco tiros, bem na cara. Talvez eu tenha merecido, quem sabe?
Assim que meu corpo caiu no chão, meu espírito irrompeu do corpo qual uma borboleta sendo extraída, pelo ar, do casulo ao qual escolheu como mãe. A morte é assim, uma extração de alma. Daí tudo volta ao normal, a diferença é que você passa a não ser mais notado entre todos, é como se nos tornássemos, e talvez seja mesmo, invisíveis. A morte não dói não. Se eu quisesse ainda podia correr atrás dos capangas que me mataram, mas preferi deixar os fdp fugirem, afinal, eu já não era mais daquele mundo.
A gente não encontra muita gente morta depois que morre não, pelo menos não aqui na Terra. Mas isso só vim compreender o porquê depois. Essas almas perdidas que ficam vagando por ai são pobres esperançosos, e essa virtude eu já havia perdido fazia muito tempo.
Morrer a primeira vez é uma das melhores experiências da vida. Vendo meus assassinos cruzarem longe o horizonte, comecei a me olhar de longe. Não é a mesma coisa que se olhar para um espelho, aqui não temos como brincar com os movimentos nem fingir a beleza. Com alguns segundos uma multidão já começou a se formar, tinha de tudo: criança, velho, adolescente, flanelinha, surdo e até cego. Todos fizeram um círculo e eu estava duplamente entre eles. Fui me desvencilhando entre os corpos vivos que me olhavam e cheguei próximo de mim. Era fato, eu estava desfigurado, acertaram bem na testa, tiraços. Filhos da puta, estragaram meu funeral!
Essa é a hora em que começam os comentários. Neles fui de Hitler a Xiaobo em dois minutos, em mais três fui de Cristo a Lúcifer e ficou esse vai e vem pelo resto do dia, imagino. A parte dura de se morrer é rever a família, todos chorando como se fosse o fim. Temos várias mortes, entre uma e outra, temos várias famílias. Há de se chorar muito ainda.
Minha mulher chegou dentro de uma meia hora. Estava de roxo, com um rosto apático, triste, sombrio... ela me amava, tem gente que gosta de massagear pedras. Mas é estranho, eu já não sentia nada àquela altura. O povo foi aumentando, aumentando, já havia um vendedor de pipoca e dois de sorvete. O povo ria, o povo se divertia, até eu ria de mim mesmo de vez em quando.
Fazia já uma hora desde a morte e ai sim, a polícia chegou. Respeitosamente um policial negrão deu os devidos pesares a minha mulher, um outro foi averiguar meu corpo, e eu apenas observando. O que foi no corpo roubou-me o relógio que eu havia comprado havia pouco, o que foi com minha mulher, dias depois, roubou-me um amor. Esse mundo é realmente estranho visto com estes olhos abstratos de agora.
Dali a meia hora o rabecão chegou, minhas carnes foram depositadas na gavetinha e fui embora. Fiquei por ali mais algum tempo, escutando o que ainda falavam as pessoas resistentes que ficaram uma hora e meia olhando o corpo de um pobre coitado numa calçada de praia ao meio-dia.
Diziam que apesar de tudo eu tinha sido um grande homem, honesto, íntegro, bom caráter... quando a gente morre a gente vira anjo na imaginação do povo.
Depois de ouvir bastante, ver meus ex-amigos confessarem suas falsidades, meus familiares em busca do dinheiro que os deixaria, minha mulher com o policial negrão e o sorveteiro voltando para casa feliz com o apurado do dia, vi que não era mais meu lugar ali. Duas horas depois da morte a vida perde a graça. Agora posso justificar o fato de não se ter tantos mortos pela Terra, aqueles que ainda vagam, são espíritos esperançosos, perturbados, em busca da compreensão humana, dos perdões que não tiveram e das promessas que não cumpriram.


Artur Silva Medeiros,
ex-policial, exonerado do cargo em 1997.



4 comentários:

Muito bom Castro, parabéns ..
É esse texto foi bem tocante pelo fato de falar de um assunto que ninguém conhece ao certo que é a morte, mais uma vez parabéns Castro !

 

Muito bom cunhado, todos nos perguntamos como sera depois da morte, podemos imagina mil e uma coisa... bjs

 

Profundo... A mais pura verdade: Quando morremos viramos anjo na imaginação dos outros ... Lembra-me um conto Machadiano por duas coisas: Descrição da afeição das pessoas e a situação ocorrida! Perfeito =)

 

Triste sina!


Muito bom o texto.

Abraços Felipe!

 

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