Parnaso em Fúria 01

A lírica de Felipe D´Castro...

A Coleira



Eu nunca gostei de pregos.
A noite caia morfina como um gato faminto relando as unhas no telhado alheio. No meu quarto, a solidão comia minhas vísceras como uma desesperada. Abro a janela e olho ao longo as ondas indo e vindo, qual nossos anseios. Mas aquela ausência era ímpar em um universo tão plural.
Eu tinha um gato. Era preto. Preto que nem a noite. Não tinha nome, porque ninguém precisa de nome; ninguém requer etiqueta nenhuma. Ele lambia meus pés todas as vezes que eu chegava em casa, exausta. Eu deitava, e ao passo que dava meus lânguidos suspiros de alívio, ele se aproximava. Passava sempre aquela língua gelada em mim. E eu gostava. Parecia a noite me lambendo... e vai saber o que isso quer dizer! Eu fiz até um poema para ele uma vez, mas não lembro bem. Nesses dias eu dormia. Hoje eu queria chamá-lo de noite, seria um nome até bonito.
Quando chovia muito, meu gato corria bem para perto de mim, como um gato assustado de verdade. Eu o conhecia a pouco tempo, não sabia mesmo o que o assustava. Houve noites em que ele teve que dormir comigo. Colocava as patas em cima de mim. Respirava forte, soprando energicamente como os uivos da noite. Eu me arrepiava toda. Não é fácil dormir com um gato preto a noite toda. Os olhos dele pareciam duas amêndoas, doces. Quando estava com fome, miava um pouco e era o bastante. Eu ia rápida depositar no seu prato o macarrão do qual ele tanto gostava.
Um dia desses, era tarde de inverno, havia chuva por todo o céu, meu gato olhou-me diferente.
Entrei em casa metida numas peles caríssimas que não deixavam o frio beijar-me. Uma vez dentro do apartamento, tranquei a porta, tirei a roupa, e esperei a noite vir me lamber... não veio. Ficou ali, parado. Olhou-me como se quisesse falar. Fiquei curiosa. Lento, começou a caminhar. Veio em minha direção. Lento. Len-to. L-e-n-t-o. E a boca fria encostou nas minhas coxas. E a língua gélida esbarrou na minha barriga. E os braços fortes me abraçaram. E os músculos rijos me amoleceram. Senti o pulsar das artérias, o tilintar dos dentes, uma mão forte se arrastando por minhas costas lisas, e descendo, descendo, descendo. Jogou-me na cama como a um brinquedo. Meu gato queria me ter. Tive o cuidado de retirar a coleira enquanto ele alisava os lábios cheios em meu pescoço. Pus as mãos em seus cabelos e tentei guiá-lo, mas ele disse que naquela noite eu é quem seria seu brinquedinho. Entreguei-me por completo. Entre, dentre e dentro. Enquanto os êxtases se misturavam, vi nos mesmos olhos dantes, o fulgor da vingança. E ele dizia “agüenta calada”, e eu, calada estava, calada ficava.
No outro dia acordei e a porta estava aberta. Foi-se embora meu gato. Preto, como a noite. Nunca mais criarei gatos. E se criar, não serão tão musculosos, e nem terão mais de um metro e oitenta. Não é tão fácil resistir a eles. Mas meu gato preto não podia ter fugido assim. Achei-o por aí, na rua, jogado. Fizemos um trato e tudo o mais. Dei comida, moradia, tudo em troca de uma simples condição. Fugiu. Vai entender esses corações humanos.



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