Parnaso em Fúria 01

A lírica de Felipe D´Castro...

Via Crúcis - Capítulo II

     Era o Circular Sesi, ônibus cuja passagem é a menor. Tratava-se, pois, de uma quarta-feira, por volta das seis e meia, ou melhor, em miúdos: o ônibus estava vomitando gente. O nosso protagonista, ou seja, o personagem principal, aquele do qual eu, narrador de terceira pessoa, narro a história, vinha em pé, espremido, ouvindo os resmungues da povalhada toda. Acabara de vir de um de seus cursinhos - já não recordo qual deles por motivo do personagem participar de tantos e tantos cursos que chega ao ponto de atrapalhar até mesmo um exímio narrador como o que vos fala. Para não perderes tempo, leitor apressado, não descreverei as tantas pessoas interessantes que o circulavam, apesar de perderes aqui descrições das mais engraçadas como a de um senhor velhinho com uns dentes tão emaranhados uns nos outros que ao olhá-los ter-se-ia a visão de uma esponja dentro de sua boca... vamos então ao que vos interessa.
     Por motivo já citado, nosso caro protagonista ia em pé; e já estava ali tão apertado que as gotas de suor já não saiam dos corpos por falta de espaço. A frente de nosso garoto, uma moça assaz bonita, aprazível aos olhos masculinos. Privilegiada, vinha ela sentada. Tinha os cabelos negros como o céu que, àquela hora, cobria a cidade de João Pessoa, uma pele alva sem manchas, dentes retos, perfeitos, lindos, porém, nela havia algo de muito singular: seus olhos. Eram, a saber, olhos de Hera, azuis, brilhantes, espelhos – eis aí mais um sumário... - , traziam o brilho do que a ostra esconde. Nosso magérrimo personagem não pôde, assim como nenhum outro homem poderia, retirar os olhos dos olhos dela e, para sua surpresa, ele em pé e ela sentada, houve um olhar recíproco, eram olhos reticentes cravados no protagonista. Ela interrompera um possível monólogo e fixara os olhos no magro personagem, talvez louca para ser personagem, também, desta estória. Ficaram nesta dita situação desde que o ônibus entrou na estrada paralela ao cemitério da Boa Sentença. Eis que havia ainda um longo caminho pela frente, leitor – digo isto para aqueles que não conhecem a geografia da Paraíba. De vez em quando a moça olhava para frente, ele se fazia de desentendido, mas logo retornavam a se encarar, foi assim durante algum tempo. Aqueles que circundavam o protagonista já se entreolhavam e se riam vendo a babaquice que estava acontecendo. “Ora”, todos pensavam, “porque ele não procura conversar?” – admita, leitor cansado, que se este capítulo fosse apenas deste olhar, fecharias agora este blog, tenho cá esta certeza, porém, àqueles que resistiram até aqui, ganhem, primeiro, daqui meu abraço e leia bem o que vos digo a seguir.
     O ônibus, velho e rangedor, chegara à altura da ponte do rio Sanhaúa, ponto de contrastes. Os dois continuavam ainda se olhando, porém, a este ponto do percurso, a pupila do protagonista havia aumentado, um alargamento de espanto e deleite, agora, mais que antes, tentava cravar seu olhar na moça sentada, ela, por sua vez, sorria sorrisos de vergonha, estava ficando tudo risível e infantil, e o magro protagonista não cessava fogo. A cada segundo seu olhar parecia penetrar mais fundo no olhar da moça, parecia buscar detalhes – creio já não ser preciso dizer o que isto seja... - ; por um instante ele se precipitou e aproximou sua cabeça do rosto da moça, sempre com o olhar fixo no dela, ela, surpresa, suspendeu a cabeça para trás e todos no ônibus ficaram ansiosos e apreensivos.
 
     - Me desculpe – disse com olhos de perdão o protagonista e olhou para trás.
     - ... – olhou para frente e enrubesceu a face lindamente frouxa.
 
     Após alguns segundos, não se dando por vencido, o garoto cravou-lhe novamente o olhar. O ônibus começara a esvaziar – inclusive a cadeira ao lado da moça - já havia lugares vazios, mas ele, o protagonista, insistia em permanecer em pé, olhando nos olhos espelhados da alva moça. Dir-te-ia, leitor enfadado, muito mais do que se passara no ônibus, mas já dou isto por caso imaginável e percebo que a leitura tornar-se-ia massiva se assim não o fizesse. Deixo aqui apenas um registro do diálogo que existiu:

     - O que é, hein, garoto?
     - O quê?
     - Você não pára de olhar, quer algo?
     
     Ar rarefeito no ônibus, talvez até o motorista estaria prestando atenção na conversa.  
 
     - Eu? Olhando pra você?
     - Sim, todo mundo tá vendo...
     - Ah, me desculpe então, me desculpe...
     - Quer saber? Senta aqui do meu lado, gostei da tua cara?
 
     Alívio no ônibus.
 
     - Não, não se incomode, prefiro ficar aqui mesmo. Apenas me olhe!
    
    Esta última frase bastou para que a garota escarlatasse a face toda e encruasse sua honra no banco do ônibus. Chegara a hora do protagonista descer do ônibus. Antes, encarou mais uma vez a moça e enunciou:
 
     - Olha, seus olhos são tão lindos, tão reflexivos, vai conseguir ainda um grande amor com eles...
 
     Ao descer do ônibus o garoto procurava aquela moça que tanto enxergava através do reflexo no olhar da garota branquinha que queria entrar na estória. – por favor, leitor, releia devagar esta frase. Ela andava bem na sua frente e tomava todos os caminhos que ele tomava. Era morena, cabelos pretos, baixa, cabia bem em uma retina azulada, já fora tudo comprovado. Surpreso, o branquíssimo protagonista observou que a moça a quem tanto olhara, mesmo que por espelhamento, parara em frente a sua própria casa - ou seja, em frente a casa do protagonista, deixo bem claro aos mais críticos. Um sentimento estranho de felicidade e surpresa dançava dentro de seu estômago chupado. Ela bateu palmas, um gesto que se faz para chamar alguém da casa.
 
     - Oi, posso te ajudar? – contato direto, frente a frente. Ela parecia muito mais bonita do que um mero reflexo, apesar da beleza do espelho.
 
     Infelizmente, leitor avulso, aqui não poderei mais escrever este diálogo nem explicar-te de quem se trata a moça, afinal, tens ainda muitas coisas a fazer, certo? O que dali saíra e o que acontecera vos conto em um próximo capítulo. Por ora, até logo.


2 comentários:

Nem preciso repetir que você escreve divinamente. Só espero que não se torne um autor maçante como José de Alencar, com descrições longas e repetitivas.

 

haaaaaaaa quero saber o resto da historia...

 

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