Parnaso em Fúria 01

A lírica de Felipe D´Castro...

Andreia Travassos

Sábado, 29 de maio de 2010


Andreia Travassos, estudante do curso de letras da UFPB    


     Dotadas de um poder de tensão incrível, as narrativas de Andreia Travassos prendem o leitor e o obriga a vigiar sua leitura, uma vez que cada termo, cada palavra é colocada como fruto de uma reflexão profunda. No conto que apresento, sobre um vampiro, que, ao que me parece, é sua especialidade, o eu-lírico narra sua morte da maneira mais suave e bela que se pode ser feita. A pena branca que anuncia a chegada do anjo que ceifa-lhe a “vida” é, para mim, o ponto alto da narrativa.
     O texto trás uma reflexão, ou melhor, um momento de crise existencial, que nos faz pensar: e o que é a realidade afinal? Sou o sou ou sou quem penso ser? Sou o que vejo ou o que é visto? Isso é o que podemos chamar de significatividade do texto. Segue ai, portanto, o conto “Passos na noite” de Andreia Travassos:





Passos na noite
“Saga de um ser”


 I


Eu queria ser um anjo. Mas, ao meu revés, transformei-me num monstro. Não digo que isto seja ruim, pois obtive a imortalidade. Porém, ao custo de milhares de vidas, que roubei e ainda vou roubar, sendo eu um assassino hematófago que se sustenta com a vida alheia como um parasita repugnante, contudo, não menos belo do que o botão de rosa mais tenro e frágil. Sou um dos senhores da noite que se esconde em suas entranhas escuras e frias para dar o bote como uma cobra venenosa no próximo ser incauto que atravessar-me o caminho. Sou o ser astuto e temeroso que procura o alívio do próprio sentimento de dor na dor alheia que causo com satisfação em minhas vítimas usando minhas presas sedentas do sangue quente que há de escorrer de seus pescoços frágeis em minhas garras impiedosas. Sou demônio, sou vampiro. Anjo caído que nunca teve asas. Assistente do anjo da morte sigo poupando seu esforço e trabalho mandando para o além aqueles que Deus me permitiu julgar e condenar. Sou uma criança sedenta de sangue e de amor, jogada e abandonada na sarjeta como um animal sarnento.
                        Eu queria ser um anjo. Ter belas asas brancas, uma harpa para tocar. Mas só posso chorar sangue, daqueles de quem foi roubado, por aqueles de quem roubei. E sigo na minha monstruosidade noite adentro, tentando sobreviver à angústia que despedaça meu coração frio a cada gole do sangue agridoce que derramo pelas calçadas da cidade, numa oferenda profana àquilo que um dia acreditei e que um dia foi meu sonho. Pois queria ser um anjo e agora espalho o líquido sagrado na esperança de que um deles venha arrancar-me as asas por ter infringido sua lei. E através de minha existência condenada, assim como Caim, dilacero meus irmãos a quem tanto amo, com lágrimas nos olhos e um sorriso nos lábios, sabendo que nem céu nem mesmo o inferno hão de querer-me, e que minha penitência continuará eternamente, até que os anjos digam amém e chega.

                                                              
                                                                               

II


As folhas do outono sob meus pés estão tingidas de sangue. Seguro com força a folha ensanguentada em minhas mãos e olho para cima. Vejo uma chuva de folhas laranja-avermelhado caindo suavemente sobre mim. É noite, e esta chuva crepuscular pesa no meu coração por saber que não estou sequer observando um décimo de sua triste beleza. Fecho os olhos sentindo um grande pesar esmagando meu coração morto e abaixo a cabeça em direção ao solo para sentir o cheiro forte e tentador do sangue que a terra começa a absorver. Com uma serenidade impensável a alguém que se encontra frente a um cadáver eviscerado, abro os olhos suavemente e admiro meu trabalho. O jovem infeliz jaz aos meus pés a olhar-me com desprezo. Eu, seu carrasco.
            Lágrimas de sangue vertem de meus olhos e pousam na face fria e sem vida de um belo rapaz que teve o azar de estar naquele bosque na hora em que os monstros vagam pela terra. Abro a mão e observo novamente aquela folha estrelada manchada do sangue daquele pobre anjo caído e me pergunto como terá sido seu último crepúsculo naquele outono frio da Inglaterra. Pergunto-me se soube aproveitar a intensa beleza daquele breve instante em que o sol deita-se no horizonte, banhando toda a terra com seu brilho laranja a tocar nas folhas que se desprendem das árvores numa dança suave e triste, fazendo-nos lembrar que a vida de todos os seres viventes é breve, bela e triste, como a dança das folhas que caem mortas no solo e nunca mais poderão voltar ao seu esplendor.
            Abaixo-me sobre minha pobre “folha caída” e beijo sua face direita, acariciando-lhe a outra face com a folha ensanguentada e sussurro-lhe um pedido de perdão. Fecho os olhos da pobre criatura com as pontas de meus dedos gélidos e levanto-me respirando fundo. Olho para as estrelas acima de mim através das copas das árvores quase nuas. A noite é bela… e as folhas caem constantemente, e apenas as pedras perduram... cobertas pela beleza mórbida das folhas mortas…

                                                                    
                                                                                       
III


Tudo não passa de imaginação… Queria poder dizer que é real, mas estaria enganando a mim mesmo e aos outros. Todos os lindos sonhos que um dia cultivou não passam de pálidas quimeras que já não mais resplandecem aos olhos do mundo. Tudo o que pensou que poderia acontecer de especial e mágico em sua vida era pura ilusão e um medo inconsciente de perder a esperança. Você é o que é, e nada mudará isso. Não existem fadas-madrinhas, não existem vampiros ou lobisomens, magos ou elfos, anjos ou demônios… Você não pode continuar a viver assim, não pode insistir em negar a realidade… E o que é a realidade? Seriam as coisas que podemos ver? Que podemos tocar? Ou seria a realidade tudo aquilo em que acreditamos? Então, se acredito que sou um vampiro, esse mal irremediável da humanidade, eu seria mesmo um vampiro? Mas se vampiros não existem, seria eu um ser inexistente? Seria eu imaginação? Mas então, qual seria a minha realidade?
Tudo não passa de imaginação… E fico me perguntando se há uma resposta para essa minha crise existencial… Chuto a beira da calçada e a sensação de dor me parece real, mas as brumas ao meu redor, tão fluidas, tão intocáveis, me dão uma sensação de não estar, de não ser… A cidade parece grande demais e me sinto comprimido na minha pequenez e insignificância, e imagino se não seria eu mais uma dessas pálidas quimeras, passando por mim, que já não mais resplandecem aos olhos do mundo…

                                                                                                 
IV


Meus olhos se fecham devagar. O sol se aproxima no horizonte. A aurora não tarda. Meu corpo está dormente e não consigo me mexer. Estou deitado sobre uma calçada fria, tão fria quanto meu corpo morto. Não há ninguém na rua e os gatos no beco terminam de saborear sua ceia. Uma chuva fina e constante cai sobre meu rosto que mira o céu. A cidade é vazia e triste. Não tenho mais vontade de continuar… Fecho meus olhos completamente. Só os sons noturnos são agora minha companhia e consolo: ainda não fui destruído.
Respiro fundo e o ar frio da noite corta meus pulmões ressecados e meu corpo todo se contorce de dor. Viro-me inquieto, como alguém que sofre de insônia e revira-se na cama tentando chamar a atenção do deus do sono com uma dança de pura luxúria. Sinto sob meus dedos a textura grossa da estrutura de cimento na qual meu corpo repousa. Meu último sepulcro.
Mesmo com os olhos fechados sinto o raiar do sol. Tento com todas as forças estar consciente nesse derradeiro momento em que o sol tocará a terra com seu beijo de vida. Eu não posso com a vida… Pois minha amante é a morte. Eu sou seu filho e também seu operário. Mas hoje, só hoje, pela última vez em minha existência maldita, eu queria poder ver o rosa suave nas nuvens que descobrem o sol de seu leito fantástico. Queria poder assistir e chorar à beleza desse momento sublime e maravilhoso do simbólico nascimento que ocorre a cada dia renovando a esperança de tudo que vive sob seus raios acolhedores.
Não consigo mais, não posso mais. O sangue em minhas mãos não pode ser apagado. Meus pecados são inabsolvíveis. O peso que sinto sobre minha alma é incomensurável. Quero parar. Quero dar um fim nesse não ser, não viver… Meus olhos se abrem. Vejo o céu ruborizar-se ante meu olhar de regozijo. Dou um sorriso sincero e aliviado. Uma pena branca desliza suavemente no ar, vindo em minha direção. Meu coração palpita. Ainda há algo de vida em mim. Fecho os olhos delicadamente e ouço o ar ao redor. Sinto um formigamento em meu corpo, minha mente flutua. Solto meu último suspiro no ar, como num beijo: “Sempre esperei por ti… meu anjo lindo…”.

                                                       Andreia Travassos
                                                                           19-06-2008

2 comentários:

um conto maravilhoso e sublime em sua composição que é digna de um conto vampiresco. você tem um talento único. sou seu fã!

 

pefeito! gostei muito desse conto descreve claremente um vapiro atormentado com a imortalidade e a morte.

 

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