Parnaso em Fúria 01

A lírica de Felipe D´Castro...

Da respiração ao contrário das coisas

                                                                                                            Domingo, 23 de maio de 2010

Entremos agora no mundo complexo da obra de Augusto dos Anjos. Para início, resolvi analisar um poema um tanto quanto desconhecido do nosso mestre: O Martírio do Artista. Vejamos:



O Martírio do Artista

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
E como o paralítico que, á míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem á boca uma palavra!

Antes de analisarmos, de fato, vamos a uma pequena paráfrase:
O eu-lírico descreve, por todo o poema, o sofrimento de um artista ao deparar-se com algo que podemos chamar de bloqueio artístico. Para isso, usa metáforas belas como: “tenta chorar e os olhos sente enxutos.” Contudo, há muito mais beleza por trás deste sofrimento do que se pode ver em um primeiro momento. Já feita a fantástica paráfrase, para o delírio dos mini-críticos literários, vamos à análise.
Comecemos nossa análise descrevendo sobre quem o eu-lírico fala. Primeiro, podemos perceber que se trata de um artista experiente, pois o eu adjetiva a arte como ingrata, ou seja, afirma que a arte não o agradece por tudo que eventualmente ele já tenha feito por ela, e o agradecimento, seria, portanto, a inspiração. No nono verso, em uma das mais belas metáforas que se pode ser lida, comprovamos que além de experiente o artista transpõe, sempre, toda sua tristeza para sua arte, quer dizer, é um artista de tristes artes. Formado o personagem, vamos à estrutura do poema.

É de total importância esclarecer a estrutura do poema analisado, ou melhor, sua relação com o poema. O soneto “O Martírio do Artista” apresenta rimas cruzadas, o que denota a confusão pela qual passa o artista durante todo o poema. A alternância nas rimas revela a oscilação do artista entre seu estado normal e seu nervosismo iminente.
Ao fim do soneto podemos perceber o freqüente uso de enjambements, o que reflete o momento de desespero do artista em tentar expor sua arte, as ligações diretas entre os versos denotam o esforço contínuo do personagem. A estrutura do poema nos faz sentir a agonia do artista.
Este soneto apresenta uma escansão diferente dos demais sonetos, geralmente estes são compostos por completo de decassílabos heróicos ou decassílabos sáficos. A primeira estrofe do soneto em questão é composta de decassílabos heróicos, já a segunda traz uma quebra de ritmo ao poema, introduzindo os três primeiros versos decassílabos sáficos, e o quarto verso decassílabo heróico. Daí em diante, há uma alternância entre decassílabos heróicos e sáficos. Esta quebra rítmica é o mais claro reflexo da agonia e desespero do artista, oscilação entre raiva e calma, como será visto adiante. Ele sente raiva ao perceber o bloqueio artístico, mas recupera a calma para poder criar, e percebendo a inutilidade de sua calma volta a ter raiva, continuando o ciclo. Impressionante como o artista sai de seu estado normal por não poder exteriorizar sua arte.
Um dos pontos fortes de um soneto é sua musicalidade, porém, este, como singularíssimo soneto que é, apresenta uma cadência diferente dos demais, perdendo até, dependendo da maneira que seja lido, suas rimas. Isto é resultado da total tristeza do artista. O eu lírico não escreve este poema, ele nos toca com suas palavras, nos faz sentir até mesmo o próprio artista em seu completo momento de agonia. Vejamos:

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
E como o paralítico que, á míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem á boca uma palavra!

Em uma das mais belas formas de aliteração e assonância, o eu-lírico utiliza-se do AR para, em uma sinédoque, representar a respiração do artista. Na primeira expressão (ARte ingRAta!) podemos notar o caráter de desabafo e decepção no próprio eu-lírico. Primeiramente o “AR” normal, para indicar à respiração pura, à inspiração, portanto; e por segundo, demonstrando o desânimo vem a expiração “RA”, com a palavra ar ao contrário, “respirar ao contrário”, expirar. Para verificar o que foi dito, basta ler a expressão soltando o ar dos pulmões ao chegar no “GRA”.
Após essa demonstração de figura sonora perfeita, vejamos o resto. Notamos que na primeira estrofe o eu-lírico nos passa a respiração normal do artista, mantendo sempre o “AR”, mas já na estrofe em que se diz: “Tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!” vemos que o artista começa a variar em sua respiração, um sinal de nervosismo e raiva, raiva esta que se comprova com a aliteração do “R” por todo o poema, sem exceção alguma. Por todos os versos podemos perceber a onomatopéia do ranger de raiva do artista, sintamos:

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
E como o paralítico que, á míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra


Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem á boca uma palavra!

Mais uma vez, afirmo, o eu-lírico não escreve este poema, ele nos toca com suas palavras.
É preciso também analisar as comparações feitas pelo eu-lírico ao artista junto a um soldado e um paralítico. De uma forma simples o eu-lírico mostrou que ao passo que um artista pode ter a eficiência do soldado pode também tornar-se inválido como um paralítico. Não à toa são expostas estas duas figuras no poema.
Um ponto que ainda não foi explorado foi as rimas. Este, garanto, é o principal. A ligação entre as rimas faz com que este seja um dos mais belos sonetos já feitos. Pode-se notar todo o martírio sofrido pelo artista, desde antes até o presente do poema, ligando apenas as rimas, começando das últimas às primeiras. Vamos a elas.
A “primeira” rima existe entre lavra e palavra. Lavra, do verbo lavrar, significa, neste caso, espalhar; portanto, espalhar a palavra. Este é o momento em que o eu-lírico ainda consegue jogar suas palavras sobre os papéis, fecundando toda sua poesia. Como já foi dito pelo próprio eu-lírico, ao artista só lhe resta a arte, assim como para o paralítico a voz é sua última e única esperança, e ai consiste a segunda rima, um simples reconhecimento do eu-lírico. Ele compreende e diz ao leitor que depende de sua “voz”, esta “fantasiando” sua arte.
Já na terceira rima há a quebra da condição fértil do artista. De repente, seus dedos brutos (o adjetivo vem devido ao estranhamento do público à boa arte, estranhamento esse que as vezes a categoriza como simples, inútil ou ignorante!) enxutos, ou seja, nenhuma arte, nada, nada brota mais de suas mãos outrora tão férteis/criativas. Logo após vem o reconhecimento da violência daquele momento, se só lhe restava (ao artista) expor sua arte, o que faria agora?
A quinta rima: tarda/farda, conta com mais uma sinédoque. A farda, neste ponto, está representando o soldado, que, por sua vez, traz ao poema a idéia de conquista, luta, disposição, tudo aquilo que tarda a chegar ao artista, devido à falta de idéias e ao impacto do momento.
Nas duas últimas rimas vemos o sofrimento do artista aumentando. Ele busca incessantemente suas idéias, busca, desesperado fazer sua arte, mas aquilo tudo está guardado dentro dele, sem poder sair. Por isso ele diz que guarda (verbo na 3ª pessoa do singular), ou melhor o que ele guarda arde-lhe todo o corpo, todo o espírito. Por fim, depois de reconhecer toda sua incapacidade naquele momento, o desânimo já é quase inevitável. O desalento penetra forte em seu pensamento, completando assim todo o martírio do artista.
Com isto terminamos nossa análise.
Para aqueles que se perguntam: será mesmo que o poeta pensou nisso tudo? Nunca saberemos, respondo, mas prefiro pensar que sim. E a propósito, vale dizer aqui que Augusto dos Anjos começava muitos de seus sonetos pelo fim, ou seja, dos tercetos, aí uma explicação mais lógica para os céticos de plantão. Mas a poesia não é lógica!*

Por Felipe D´Castro



* Esta análise pode ser encontrada também no blog Augusto em Foco

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